Maria do Mar Sardinha Amparo |
Tenório Sardinha |
"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas (...)"
Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa), in Livro do Desasossego
Nem mais... Bernardo Soares / Fernando Pessoa roubou-me as palavras da boca. Retocou-as e tornou-as belas como só ele sabia fazer. Gosto de escrever. Isso não significa que o que escrevo valha grande coisa. Significa apenas isso... que tal como desenhar e pintar, adoro escrever. E ao fim e ao cabo, não é tudo a mesma coisa? O concurso "Desenha a tua sardinha" permitiu-me fazer tudo isto num mesmo lugar, num mesmo momento. Só por isso já valeu a pena a minha participação. Por isso, tomo a liberdade de colocar num mesmo post todos os textos que fui desenhando no Facebook, durante o processo de votação da shortlist para apurar as 150 propostas mais votadas. Não houve qualquer outro objectivo que não fosse o puro prazer de escrever e de oferecer uma mitologia, uma história, une raison d'étre a este casal tão carismático. O irónico é que gostei tanto que cheguei a ansiar pelo fim do dia, momento em que no comboio e ouvi o que eles me queriam contar e passei para o papel.
Se alguém tiver pachorra para ler as tontices que me saíram da cabeça durante a semana passada, aqui vão todos os texto que redigi durante esse periodo.
Aos eventuais resistentes que ainda estejam aí desse lado do ecrã no final deste post... um muito obrigado por não desistirem
"Miúda. Sei que me desejas até à espinha. Vislumbrei isso quando os nossos olhos se cruzaram na lota. A culpa não é tua, descansa. A culpa é minha que sou irresistível. É mais forte do que eu, o que fazer? Não lutes contra o desejo. É uma luta inglória. Só adiarás o inevitável. Comigo na minha lata redonda com espelhos no tecto, nadarás nas barbatanas do desejo. Hoje serás minha. Deixarei a chave na recepção. O quarto é o 75. Espero por ti, com uma garrafa de ómega 3."
Carta redigida por tenório Sardinha a uma fiel admiradora, deixada na recepção do famoso Hotel des Bains
"Olá! Sou uma jovem morena, genuinamente portuguesa, 20 cm de mau caminho. Tenho mais curvas que a autoestrada de Cascais, e não tenho tabus. Cada uma das minhas escamas está ávida de experiências novas, especialmente aquelas que fazem encaracolar as barbatanas ;). Senão tens medo de mergulhar no amor e na música, contacta-me. O número do meu quarto é o 74."
Anúncio classificado publicado no Jornal "Cardume", da autoria de Maria do Mar Sardinha Amparo, quando era adolescente.
São 2:53 da manhã. Estou no camarim 75 do Delícias do Bar. Localiza-se no 2º pilar da ponte 25 de Abril... e é um verdadeiro altar em honra do Fado e de outros vícios inconfessáveis. Daqui a pouco irei tocar. Por isso afino cada uma das cordas da minha guitarra com um amor devoto, porque amo esta senhora de madeira. Conheço-a como a palma das minhas barbatanas. É nela que encontro aconchego nos momentos em que me sinto só. Como hoje. Já me cruzei com tantas mulheres... algumas delas verdadeiramente inesquecíveis. Uma atum fabulosa que conheci quando me pediu para lhe espalhar azeite no dorso. Uma moreia cujas dentadas de amor me deixaram marcas eternas. Uma solha tão elegante que muitas vezes estava aos meus pés e eu nem a via. Duas enguias eléctricas gémeas que nem vou falar aqui por pudor. Todas elas me deixaram marcas. Mas nenhuma delas me tatuou o meu coração. Serás tu a Tal? Aquela cujo simples olhar me transformará em patê? Será que estás algures lá fora, na multidão que aguarda a minha actuação? Sei que estás... Sinto isso. Procura-me!... Já te disse que estou no camarim 75?
São 2: 55 da manhã no Delícias do Bar. Sabem, aquele recanto de má fama, onde a liga e a faca imperam, logo ali entre Almada e Lisboa. Sim, esse mesmo. Estou a ensaiar a minha voz no meu camarim. Esculpo-a com chá de anémona. Desbasto-a com aguardente de coral. Domo-a com o coração, com a parcimónia de quem sabe que a perfeição não tem preço nem tempo. No camarim 75, paredes meias com o meu, alguém dedilha numa guitarra portuguesa uma melodia de amor e solidão. Quem será? Não lhe conheço as guelras mas algo faz sentir um calafrio na espinha. Serás tu o tal... Aquele que seguiria até ao mais profundo dos mares, até ao fundo da falha de Santo André se isso fosse preciso? Não falo de pura atracção física, como aquela que senti por Zacarias Tubarão, rico de corpo mas pobre de coração. Não falo de paixões descontroladas como a que tive com Zé Polvinho, cujos 8 braços tatuados tanto me amavam como me oprimiam. Falo de amor, como aquele que canto e conto nos meus fados. Nem mais, nem menos. Serás tu o tal? Estás aí desse lado? Sabes... É fácil decorar... Camarim 74. Vem!
2:35 da manhã. Entro no palco. Chegou a hora da minha actuação. Peixes abissais bioluminescentes apontam-me sua luzes. Estou ofuscado, Pouco consigo ver da plateia. Ainda não sei o que tocar, nem me preocupo muito com isso. A música não sai das minhas barbatanas, sai do meu coração, e esse pobre coitado sabe sempre o que tocar. Pego num cigarro de algas-secas, acendo-o com a minha enguia-eléctrica portátil que uma linda baleia-anã, especialista em dança do dorso me ofereceu, dias antes de acabarmos um breve mas explosivo romance. O meu rosto incendeia-se por instantes. Do centro de mim, como sempre acontece, surge uma música. O meu coração ordena-me "Verdes Anos", de Carlos Paredes, um dos poucos humanos por quem eu daria uma barbatana e metade das minhas escamas. As minhas barbatanas, submissas, obedecem. A guitarra, minha amante de madeira, geme de prazer e de dor. Toco mais uns temas de António Chicharrinho, grande mestre da guitarra portuguesa, e porque nem só de fado vive o peixe, termino a minha actuação com a Bossa Nova de Atum Jobin. A peixeirada aplaude em uníssono... Mas eu prefiro tomar ao balcão um bom copo de água-ardente do complexo de Sines. Sei que já devia ter abandonado estes maus vícios. Amanhã. Não hoje. Hoje preciso desesperadamente de tapar um buraco na alma.
3:35 da manhã no bar de má fama, Delícia do Bar. Chegou a minha vez de actuar. Ainda estou extasiada com actuação anterior que ouvi no meu camarim 74, enquanto me maquilhava e perfumava com o meu insubstituível perfume "Coral nº 5". Será que nos podemos apaixonar por alguém apenas por a ouvirmos tocar guitarra? Mais uns minutos de actuação deste Desconhecido e acho que nem uma cana de pesca me conseguiria levantar do leito do rio. Entro no palco, uma mistura de aromas entram-me pelas guelras... Mas reconheço 2 dos mais intensos... Tabaco de algas-secas e o clássico "Le Sardine" de Ysco Saint Laurent. Intuitivamente, Sinto que estes aromas são do meu Desconhecido. Inspirada por nem sei bem o quê, começo a cantar. Dos meu lábios sai "A Canção do Mar", imortalizada por essa deusa humana chamada Amália. A minha voz sai rouca e plena de bolhas de ar, mesmo como eu gosto. Canto "Polvo que nada no rio" do poeta Pedro Peixe de Mello como se quisesse aproveitar os últimos minutos de vida antes de ser pescada por um arrastão. E mais não consigo cantar. A minha voz emudece perante o que os meus olhos me oferecem. Lá ao fundo, encostado no balcão, alguém me olha intensamente, com uma expressão de reverência e de desejo que jamais esquecerei. Um senhor distinto, belo de uma forma clássica, saturado de charme até à mais pequena escama... Um verdadeiro gentlefish. Sem que ninguém me tenha dito, sei, bem no centro de mim, que este belo cavalheiro é a voz que ouvi. O Desconhecido. O peixe da minha vida.
Por momentos, deixo de respirar.
Olho estupefacto para o palco. E hipnotizado. Bem à minha frente está a mais bela sardinha que os meus olhos já vislumbraram. Uma verdadeira brasa de sardinha. E olhem que eu já nadei pelos 7 mares, e já conheci os mais belos espécimens da fauna feminina deste planeta. A voz é rouca e doce em doses maravilhosamente iguais. Os olhos cantam o fado mais belo que já ouvi. São profundamente expressivos, e contam histórias de vida e morte, de saudade e de tristeza, e de esperança também. As guelras são finamente desenhadas e vibram ao som da emoção que a boca deixa escapar. As escamas, de um prateado perfeito, pequenos espelhos que reflectem mil cores e brilhos que conseguem atravessar a camada espessa de fumo que flutua no espaço entre nós. No programa da noite diz que esta deusa se chama Maria. Maria do Mar Sardinha Amparo Subitamente, ela deixa de cantar. O xaile cai ao chão, e fica a olhar fixamente para mim com uma expressão de reverência e de desejo que jamais esquecerei. Algures oiço um tamborilar frenético. Por momentos, penso que o som provém de milhares de latas com rodas a passar a alta velocidade no tabuleiro da ponte, bem por cima de nós. Mas a esta hora pecaminosa são poucos os humanos que atravessam a ponte.
Nesse mesmo instante apercebo-me que estou enganado... O tamborilar que oiço vem bem de dentro de mim. É o meu coração.
A minha busca termina aqui!
Deitados numa pequena lata de conserva enferrujada de uma pensão de gosto duvidoso a 10 metros do cais das colunas, tapados com uma fina fatia de pão duro e meio bolorento, Tenório e Maria dormem profundamente, enroscados um no outro. Podiam ser 2 carpas Koi num abraço yin e yang... a Verdade Universal que emanam é a mesma. Mas são só duas sardinhas a assar nas brasas de uma chama que não se vê. Na recepção, num pequeno rádio a pilhas mal sintonizado canta Nina Salmonete, que sabe sempre tudo. "My baby just cares for me".
Lá fora o sol já se ergueu.
Fim
Sem comentários:
Enviar um comentário
Muito obrigado pelo seu comentário.