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sábado, 3 de novembro de 2012

Anjo da guarda




"ClaraFila"
Por Paulo Galindro
Acrílico sobre pedaço de madeira flutuante
Novembro de 2012


Anjo da Guarda,
minha doce companhia,
guarda a minha alma
de noite e de dia



aqui falei muitas vezes da Skye. Não me alongarei mais sobre o furacão que há 2 anos atrás nos entrou pela casa adentro, e nos revirou tudo do avesso. Metaforicamente, emocionalmente e fisicamente.

Quero apenas falar-vos um pouco do que é correr com esta menina.
Com a Skye, já corri aproximadamente 1100 km. Sempre no paredão de Oeiras. É muito tempo passado a correr com uma criatura que não é da minha espécie. Durante este tempo de esforço partilhado, são muito os laços que se foram criando, ao ponto de quase já nem precisar de lhe dar ordens. Sei exactamente os sítios onde ela irá os xixis, os cócós (devidamente apanhados e deitados no lixo, ao contrário do que fazem muitos humanos que por ali se arrastam). Sei quais os cantos que ela irá cheirar, os pontos em que ela irá ficar para trás até a deixar de ver e aqueles que ela irá correr que nem uma desalmada, muito à frente de mim (sabe-se lá porquê... talvez sejam variações no campo magnético da terra ou as emanações de algum antigo cemitério índio que por ali existiu).
Ela tem sido a minha única companhia. Estou tão habituado à sua silenciosa omnipresença que receio até que se algum dia participar numa qualquer corrida não farei nem 1000 metros se ela não estiver lá comigo.
98% dos quilómetros que corremos foram feitos à noite, algumas dessas vezes já perto da meia-noite. Como devem calcular, a essa hora não há muitos malucos como eu a correr. A Skye é, nesses momentos de solidão, um verdadeiro anjo-da-guarda. Não daqueles anjos-da-guarda assexuados e irreais das igrejas barrocas, mas sim um verdadeiro anjo-da-guarda, de carne e osso, daqueles que todos nós temos na nossa vida mas nem sempre nos apercebemos. Não voa, é certo. Também não toca harpa nem dispara setas (o único gadget que tem é uma luzinha daquelas que os espeleólogos usam na cabeça e que se vê a centenas de metros) mas a sensação de segurança que me transmite a sua presença é imensa, mesmo nas noites de grande tempestade, que são aquelas em que mais gosto de correr. Vá-se lá saber porquê, mas correr com vento, chuva a potes, ondas enormes a espalhar espuma e sal pelo paredão dá-me uma paz de espírito e um silêncio interior que não consigo atingir quando tento meditar no conforto o sofá.

A Skye tem uma fixação por paus, canas, garrafas de plástico. Enfim, qualquer coisa que ela possa morder enquanto corre. Pode estar completamente exausta, mas se porventura vislumbrar um bocado de madeira algures ela irá buscá-lo onde quer que esteja e vai andar com ele na boca até se fartar. Vai brincar com ele, atirá-lo ao ar e apanhá-lo em pleno voo, mordê-lo até não restar mais do que umas lascas. Pode ser um pedaço de madeira pequeno com algumas gramas, ou ter quase dois metros e pesar 2 quilos, o que provoca grande confusão e gargalhadas em quem porventura se cruzar connosco.
Pode até ser uma folha de palmeira, que como uma vassoura gigante, varre tudo o que encontra pela frente (pessoas inclusive).


Recentemente, a Skye encontrou o pedaço de madeira que apresento acima. Transportou-o na boca durante praticamente toda a nossa corrida, que são cerca de 10 km. Quando cheguei ao carro e ela me atirou para os pés, reparei que este pedaço de madeira velho, meio podre - com 62 cm e quase um quilo - e que talvez tenha flutuado milhares de quilómetros pelos oceanos, quem sabe desprendido de um qualquer galeão afundado há séculos, apresentava um desenho de veios lindíssimo, que nesse preciso momento me inscreveu nos olhos a imagem de uma deusa, a quem eu decidi chamar ClaraFila, uma das 12 deusas da floresta. E isto decidi eu também. Trouxe-a por isso para casa, e decidi pôr a descoberto o que os meus olhos já tinham visto.

E não! Antes que me perguntem, não fumei nem bebi nada.

2 comentários:

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