Sento-me à minha mesa de trabalho e desenho. Olho através da janela e vislumbro o Sena. Lá longe, o rio desliza tranquilamente ao som de acordeões que adormecem vagabundos. A Noite espreita. Quer entrar. Pede-me que lhe abra a janela. Fico indeciso, nervoso com a sua presença inesperada, mas lá aceito que ela entre, talvez só por instantes. Sinto-me intimidado.
Ela entra. Traja um vestido deslumbrante, veludo negro semeado de estrelas cintilantes. Usa um vestido diferente cada vez que surge. Reparo nisso sempre que a observo mas, o de hoje, é, sem dúvida, o meu preferido.
No final de cada dia, todos os dias, ela visita outras casas, outras cidades, outros países, e ignora-me. Não sei como hoje terá reparado em mim. Talvez por ser o meu aniversário, quem sabe! Só ela poderá responder.
Senta-se a meu lado e pede-me:
- Desenha-me.
Não consigo acreditar. A Noite, a bela Noite, vem a minha casa para que eu a pinte. Só pode ser um sonho! Belisco-me.
Já há muito tempo que a observo. Vejo-a entrar em muitos sítios. Vejo-a visitar pessoas mais importantes do que eu, um simples pintor que ninguém conhece. Com a sua inseparável amiga Lua, entra onde quer e espreita segredos inconfessáveis. A Lua também é minha amiga. Já lhe fiz o retrato e já lhe pedi, várias vezes, para me apresentar a Noite. Nunca o fez. Penso que tem ciúmes.
Hoje, ela veio sozinha. A Lua recusou-se acompanhá-la, sente-se aborrecida e não se quer mostrar. Ainda bem! Assim posso, finalmente, desfrutar a sua presença serena. É a melhor prenda de aniversário que poderia ter.
- Desenha-me – insiste ela.
Começo a desenhá-la timidamente. Esboço um traço do seu rosto moreno. Sobressai o contraste com o branco da tela que me suplica que a preencha. A Noite parece sentir-se envergonhada e, de repente, cora.
Traço a traço, o seu rosto fica completo. Mostro-lho. Tenho receio da sua reacção.
- Está lindo! Nunca ninguém me pintou com tanta perfeição.
- Não é nada de especial. Tu mereces muito mais. O retrato não é fiel à tua beleza.
Mantemo-nos numa cavaqueira sem nos apercebermos que as horas avançam. O retrato repousa em cima da minha mesa de trabalho. Parece esquecido, ultrapassado pelas palavras. Mas não. Apenas descansa.
A Manhã apresenta-se, ainda um tanto estremunhada. Acompanhada pelo Sol, acorda o Dia e a Noite tem de partir. Rivais, não se entendem as duas, não convivem. Ela despede-se, apressada.
Resta-me o retrato, parado em cima da mesa. Olho-o e fico feliz. Imensamente feliz. Ainda bem que mudei para este décimo terceiro andar. O último. Fica afastado da praça, onde passo os dias a pintar, mas perto do céu. Aqui, a Noite chega primeiro.
Ana Paula Oliveira
Sobrinha Ervilha
Foi num jantar de família, que a sobrinha declarou:
- Não querer comida saudável e
- Que o exercicío a cansou!
Não ia mais comer salada, peixe grelhado ou choucrute, que mandava a sopa aos legumes e às frutas, os iogurtes!
Que fossem correr outros, saltar à corda, nadar...
Ela não estava para isso, nem ia fazer por estar!
Tudo tinha experimentado, tudo lhe desgostara.
Agora ditava ela e outra história começava!
Levantou-se da cadeira e rumou para a cozinha mas desviou a saladeira e viu a alface murchinha...
Ao lado o grão amuava, encostado à farinha;
os feijões, envinagrados, reclamavam às lentilhas...
Tudo se remexia, com a desfeita da sobrinha;
até os talheres tiniam, censurando a facadinha.
Eis que as couves, em protesto, revelando a sua fibra, abrem folhas, batem caules, exigindo ser comidas! Cebolas, alhos e louro apoiam a pretensão, gritando alto, convictos: batatas fritas não!
Juntam-se os cogumelos e os bifinhos de peru, a salsa e os coentros, a soja e o tofu.
Todos os alimentos saudáveis vinham clamar justiça: não tinham menos sabor que os torresmos ou a linguiça!
Salta a orelha de porco, já de pelos eriçados, rasgam-se de repente os sacos de rebuçados e toma a palavra a salsicha, teimando ter proteínas, defendendo os “pacotinhos”, que dizem ter vitaminas!
E como se não bastasse, concluiu o argumento, apontando como são e como alimento isento, o vaidoso pão-de-forma
Inchado pelo fermento!!
Não esperou pela demora, de engolir tudo o que disse: levou um pêro amarelo, que acabou com a trafulhice.
Mas não ficou por ali a discussão alimentar, que o salmão e as pevides também quiseram falar.
Vinham esclarecer que havia uma confusão: não era por serem gordos que eram maus para o coração! Explicaram, explicadinho, que há que saber comer: conhecer os alimentos, para os poder escolher.
Cada um tem o seu peso, cada um sua medida e cada dentada conta, na longa linha da vida.
Mereceu um grande aplauso esta conclusão sensata, com que todos concordaram, mas a sardinha brejeira, valendo-se da agitação - e sendo já menos cordata - mandou a aquela salsicha de volta p’ra sua lata.
Então a sobrinha ervilha, feita num molho de bróculos mas vendo não ter razão, reviu os seus fundamentos e fez nova declaração:
- Tragam-me um prato grande, que eu divida em três partes: a primeira, mais pequena, há-de ser para peixe ou carnes; a segunda maiorzinha, para batatas de verdade... e aqui deixo o compromisso: mas nem que caiam as paredes!, no espaço maior de todos... no espaço maior de todos!... ponham-me os legumes verdes!
Dalila Romão
Demorou muito tempo a decidir quem seria o vencedor do Concurso de Escrita Hipercriativa que lancei aqui. Este atraso deveu-se em grande parte a um fase de imenso trabalho que me tirou toda e qualquer hipótese de "fechar esta gaveta". Mas também se deveu a uma tremenda indecisão da minha parte. Li, reli e voltei ler os dois textos que todos vocês escolheram, e quanto mais o tempo passou, mais indeciso fui ficando. Qual dos dois textos escolher? A sensualidade nocturna e quase gótica de "O Pintor da Noite" ou a cacofonia bem humorada de uma manifestação de alimentos tão ricos em nutrientes como de personalidade de "A Sobrinha Ervilha"? Tons de azul escuro e preto, ou uma explosão de cor.
Pensei, pensei, pensei até o meu cérebro produzir fumo de incenso com aroma de ópio e, contra toda a lógica e sensatez que já deveria ter desenvolvido num momento em que estou completamente afogado em trabalho, fiz aquilo que se espera de um indeciso patológico que se depara com duas opções maravilhosas. De facto, qualquer um dos dois textos, por razões diferentes, espicaça-me a vontade de criar.
Já adivinharam? Isso mesmo, optei pelas duas.
Assim sendo, muitos parabéns à Dalila Romão e à Ana Paula Oliveira por me terem dado tanto trabalho e luta a escolher. Por isso mesmo, e conforme estipulado, oferecerei uma ilustração a cada uma das autoras, inspiradas nos respectivos textos.
Depois entrarei em contacto convosco para combinarmos os pormenores.
A todos os restantes concorrentes e participantes na votação, uma vez mais um muito obrigado pelo vosso contributo.
Acabei de ver a belíssima novidade e não caibo em mim de contente. Adorei a "sensualidade nocturna e quase gótica" que viu no meu texto. Agradeço o desafio pois este texto andava há muito num impasse pois eu não sabia como lhe dar a volta para chegar ao fim e o concurso espicaçou-me a inspiração. Muito obrigada.
ResponderEliminarEH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! :D
ResponderEliminarMUITO OBRIGADA PAULO!!!!!! OBRIGADA PELO CONCURSO, PELOS COMENTÁRIOS E PELA IMENSA GENEROSIDADE!!!!
PARABÉNS ANA PAULA!!
Obrigada ainda a todos os que de alguma forma participaram nesta iniciativa.
Beijinhos
DALILA
Belas iniciativas por aqui se lançam! Só tenho pena de não me ter apercebido dela mais cedo para de alguma forma ter participado, pelo menos votando! Fica para a próxima. ;)
ResponderEliminarparabéns aos vencedores, e espero que venham mais iniciativas assim. :)
ResponderEliminarbeijinhos