segunda-feira, 31 de agosto de 2015

A minha mãe tinha um nome enigmático.





Elas são as mães:
rompem do inferno, furam a treva, 
arrastando 
os seus mantos na poeira das estrelas.



Animais sonâmbulos, 
dormem nos rios, na raiz do pão.

Na vulva sombria 
é onde fazem o lume: 
ali têm casa. 
Em segredo, escondem 
o latir lancinante dos seus cães.

Nos olhos, o relâmpago 
negro do frio.

Longamente bebem 
o silencio 
nas próprias mãos.

O olhar 
desafia as aves: 
o seu voo é mais fundo.

Sobre si se debruçam 
a escutar 
os passos do crepúsculo.

Despem-se ao espelho 
para entrarem 
nas águas da sombra.

É quando dançam que todos os caminhos 
levam ao mar.

São elas que fabricam o mel, 
o aroma do luar, 
o branco da rosa.

Quando o galo canta 
Desprendem-se 
para serem orvalho.



Eugénio de Andrade




A minha Mãe tinha um nome invulgar. Chamava-se Ortigia. Durante muitos anos questionei-me onde teriam ido buscar nome tão exótico. As teorias eram muitas... entre um eventual lapso de um funcionário do cartório entediado, até à possibilidade do nome ter sido sugerido por um qualquer familiar com maus fluidos, a verdade é que o nome da minha mãe sempre me fascinou. Quis o destino que eu apenas descobrisse uma das possíveis mas improváveis explicações para o seu nome, a poucos dias de ela nos deixar fisicamente. Na verdade, digo "possíveis mas improváveis explicações" porque duvido, muito sinceramente, que em pleno Alentejo de 1943, quando a maldita ditadura ceifava as vidas de milhões com a fome, a ignorância e a miséria - em nome de deus, pátria e a família - alguém tivesse a visão poética de dar um nome de uma bela ilha italiana a uma menina recém-nascida. Porque Ortigia é isso mesmo... o nome de uma pequena mas bela ilha italiana, o coração de Siracusa, na Sicilia (podem ler um pouco mais aqui).

Hoje a minha Mãe, que tem nome de uma bela ilha italiana, e também de perfume, deixou-nos. Desmaterializou-se. Abraçou o infinito. Cansou-se de sofrer na cama 18 da ala de pneumologia do Hospital do Barreiro, onde entrou há 40 dias atrás para nunca mais sair. A minha Mãe nunca foi uma pessoa forte. A força interior não era de facto um dos seus encantos. Mas lutou como ninguém contra um monstro silencioso, de origem desconhecida, que lhe secou os pulmões e lhe foi roubando o oxigénio do corpo, num processo assustadoramente fulminante e imparável, porque resistente a todos os medicamentos que lhe foram sendo administrados em doses que chegaram a ser máximas, a uma miligrama da eutanásia. A sua nobreza perante um cenário tão dantesco foi a sua redenção pessoal. Morreu como uma guerreira amazona que jamais mostra um ar de fraqueza perante o seu inimigo.
Mas não foi uma luta solitária. Durante a eternidade destes 40 dias, a minha Mãe, que tem nome de uma bela ilha italiana, foi acompanhada por um super-herói... o meu Pai. O meu Pai chama-se António, e é homem mais carinhoso, mais forte, mais corajoso, mais doce, mais presente do mundo. Deu-lhe tudo o que tinha e o que não tinha, e ainda lhe sobrou forças para ajudar os doentes das camas 19 e 20, que foram entrando e saindo enquanto a minha Mãe lutava pela sua vida. A sua dedicação à minha Mãe foi de uma abnegação e de um altruísmo como eu pensava já não existir no mundo. Com 73 anos, o meu Pai António deu-me duas lições práticas que jamais esquecerei:
Que a morte pode fazer origami com o nosso corpo mas jamais nos poderá roubar aquilo que nos torna humanos... a capacidade consciente de amar incondicionalmente alguém. Porque é uma escolha... e quando se segue esse caminho, somos de facto invencíveis imortais.
Que a humanidade ainda tem salvação, enquanto ainda existirem seres de luz como ele. 

Nos próximos tempos, eu e o meu extenuado pai - com a ajuda da minha família (Skye incluída) - vamos  reconstruir os nossos corações estilhaçados. Sei que é uma tarefa difícil, e que no meio de tantos cacos cardíacos, vamos com toda a certeza misturar os fragmentos sem saber de quem é o quê... mas isso só nos vai tornar mais fortes e unos. 

A certidão de óbito da minha Mãe diz-nos que morreu hoje, perto das 15 horas. Mas em bem de uma verdade mais profunda e invisível, a minha Mãe não morreu hoje. Tornou-se Maiúscula, Omnisciente e Omnipresente. Mas isso já ela era. Ela e todas as mães deste mundo. Portanto, pouco mudou... afinal "Morrer é apenas não se ser visto. Morrer é a curva da estrada", como tão bem disse Fernando Pessoa.

A ti Mãe... que agora ocupas todas as coisas e todos os lugares, incluindo uma pequena mas bela ilha italiana que tem o teu nome, e que nunca conheceste - obrigado por tudo.

Amo-te.

Até sempre.

Até já. 




quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Ninja




Mais uma ilustração para a revista 360, da Federação Portuguesa de Futebol, desta vez para ilustrar o estranho desaparecimento das bandeirolas de canto nas vésperas do jogo Liverpool / AC Milan, em Instambul, no final de Maio de 2005.
Aproveitei o mistério e desenhei o meu primeiro ninja (se não sabem, deviam saber... ninjas e mordomos são sempre os culpados) que é sempre um momento importante na vida de qualquer ilustrador. Os psicólogos até têm uma designação técnica para este importante momento: "A fase em que um ilustrador desenha o primeiro ninja".


Another illustration for the Portuguese Football Federation, this time to illustrate the strange disappearance of the flags of the corners in the game eve Liverpool / AC Milan in Instambul at the end of May 2005.
I took the mystery and drew my first ninja (if you do not know, should know ... ninjas and stewards are always the guilty) which is always an important moment in the life of any illustrator. Psychologists even have a technical designation for this important moment: "The stage at which an illustrator draws his first ninja".

terça-feira, 4 de agosto de 2015

O Meu Chão / My Ground


Nasci há 45 anos nesta casa, onde os meus pais ainda moram. Foram incontáveis as horas que passei a brincar neste chão de cozinha. Nele vi paisagens singulares, estradas labirínticas e quarteirões de cidades. Nos buracos deste velho chão explorei crateras de planetas longínquos, e nas suas juntas vi carris por onde os meus comboios de berlindes deslizavam cuidadosamente para não descarrilar. Convivi com este chão dia e noite, durante 28 anos. Quase já nem dava por ele, até hoje, quando o olhei através da lente do meu telemóvel. Por um breve instante, vi-o pela primeira vez, como quando era criança... porque somos crianças enquanto temos a capacidade de ver, repetidamente, as coisas que nos rodeiam e que nos são familiares, pela primeira vez.

Quando quero descobrir os erros de uma ilustração ou um desenho no qual estou a trabalhar, observo-o através de um espelho. Nesse mundo invertido, o nosso cérebro viciado é enganado e tudo salta à vista com uma frescura e uma intensidade arrebatadoras.

Com o mundo que nos rodeia, talvez possamos fazer o mesmo... e quem sabe, por uns breves momentos, possamos ser crianças outra vez.

I was born 45 years ago in this house, where my parents still live. I spent countless hours playing on this kitchen floor. On it, I saw unique landscapes, mazy roads and blocks of cities. In the holes of this old ground I explored the craters of distant planets, and train made of marbles slid carefully on the rails of his joints for not derail. I lived with this ground day and night, for 28 years. I never looked it with real attention until this day, when I observed it through my cell phone lens. For a brief moment, I saw it for the first time, such as when i was a child ... because we are children while we have the ability to see, repeatedly, things that surround us and which we are familiar, for the first time.

When I want to discover the errors of an illustration or a drawing in which I am working, I observe it through a mirror. In this inverted world, our addicted brain is tricked and everything stands out with a freshness and sweeping intensity.

With the world around us, maybe we can do the same ... and maybe for a few brief moments, we may be children again.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Puro Prazer / Pure Pleasure









Há de facto muito poucos momentos que me dêem mais prazer e felicidade do que ver os meus filhos a brincarem com a Skye.

There are very few moments that give me more pleasure and happiness than to see my little kids playing with Skye.

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