rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.
Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.
Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.
Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus cães.
Nos olhos, o relâmpago
negro do frio.
Longamente bebem
o silencio
nas próprias mãos.
O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.
Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.
Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.
É quando dançam que todos os caminhos
levam ao mar.
São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.
Quando o galo canta
Desprendem-se
para serem orvalho.
Eugénio de Andrade
A minha Mãe tinha um nome invulgar. Chamava-se Ortigia. Durante muitos anos questionei-me onde teriam ido buscar nome tão exótico. As teorias eram muitas... entre um eventual lapso de um funcionário do cartório entediado, até à possibilidade do nome ter sido sugerido por um qualquer familiar com maus fluidos, a verdade é que o nome da minha mãe sempre me fascinou. Quis o destino que eu apenas descobrisse uma das possíveis mas improváveis explicações para o seu nome, a poucos dias de ela nos deixar fisicamente. Na verdade, digo "possíveis mas improváveis explicações" porque duvido, muito sinceramente, que em pleno Alentejo de 1943, quando a maldita ditadura ceifava as vidas de milhões com a fome, a ignorância e a miséria - em nome de deus, pátria e a família - alguém tivesse a visão poética de dar um nome de uma bela ilha italiana a uma menina recém-nascida. Porque Ortigia é isso mesmo... o nome de uma pequena mas bela ilha italiana, o coração de Siracusa, na Sicilia (podem ler um pouco mais aqui).
Hoje a minha Mãe, que tem nome de uma bela ilha italiana, e também de perfume, deixou-nos. Desmaterializou-se. Abraçou o infinito. Cansou-se de sofrer na cama 18 da ala de pneumologia do Hospital do Barreiro, onde entrou há 40 dias atrás para nunca mais sair. A minha Mãe nunca foi uma pessoa forte. A força interior não era de facto um dos seus encantos. Mas lutou como ninguém contra um monstro silencioso, de origem desconhecida, que lhe secou os pulmões e lhe foi roubando o oxigénio do corpo, num processo assustadoramente fulminante e imparável, porque resistente a todos os medicamentos que lhe foram sendo administrados em doses que chegaram a ser máximas, a uma miligrama da eutanásia. A sua nobreza perante um cenário tão dantesco foi a sua redenção pessoal. Morreu como uma guerreira amazona que jamais mostra um ar de fraqueza perante o seu inimigo.
Mas não foi uma luta solitária. Durante a eternidade destes 40 dias, a minha Mãe, que tem nome de uma bela ilha italiana, foi acompanhada por um super-herói... o meu Pai. O meu Pai chama-se António, e é homem mais carinhoso, mais forte, mais corajoso, mais doce, mais presente do mundo. Deu-lhe tudo o que tinha e o que não tinha, e ainda lhe sobrou forças para ajudar os doentes das camas 19 e 20, que foram entrando e saindo enquanto a minha Mãe lutava pela sua vida. A sua dedicação à minha Mãe foi de uma abnegação e de um altruísmo como eu pensava já não existir no mundo. Com 73 anos, o meu Pai António deu-me duas lições práticas que jamais esquecerei:
Que a morte pode fazer origami com o nosso corpo mas jamais nos poderá roubar aquilo que nos torna humanos... a capacidade consciente de amar incondicionalmente alguém. Porque é uma escolha... e quando se segue esse caminho, somos de facto invencíveis imortais.
Que a humanidade ainda tem salvação, enquanto ainda existirem seres de luz como ele.
Nos próximos tempos, eu e o meu extenuado pai - com a ajuda da minha família (Skye incluída) - vamos reconstruir os nossos corações estilhaçados. Sei que é uma tarefa difícil, e que no meio de tantos cacos cardíacos, vamos com toda a certeza misturar os fragmentos sem saber de quem é o quê... mas isso só nos vai tornar mais fortes e unos.
A certidão de óbito da minha Mãe diz-nos que morreu hoje, perto das 15 horas. Mas em bem de uma verdade mais profunda e invisível, a minha Mãe não morreu hoje. Tornou-se Maiúscula, Omnisciente e Omnipresente. Mas isso já ela era. Ela e todas as mães deste mundo. Portanto, pouco mudou... afinal "Morrer é apenas não se ser visto. Morrer é a curva da estrada", como tão bem disse Fernando Pessoa.
A ti Mãe... que agora ocupas todas as coisas e todos os lugares, incluindo uma pequena mas bela ilha italiana que tem o teu nome, e que nunca conheceste - obrigado por tudo.
Amo-te.
Amo-te.
Até sempre.
Até já.