Com tudo o que aconteceu nestes últimos tempos, são muitos os momentos em que me sinto lá em baixo, deprimido, triste e sem grande força anímica para criar algo que seja o oposto do inverno interior que me tem fustigado. Não é fácil sair desse estado de torpor... muitas vezes não o consigo. Mas quando o consigo, entro num estado de leveza tal que evito abrir janelas cá em casa, não vá ser arrastado pela pouca brisa deste novembro ensolarado que está a acontecer lá fora. Os pensamentos envoltos numa neblina pegadiça ficam lá para trás, e sinto um vazio bom dentro de mim. Silencioso. Apaziguador. Leve com um dente de leão ao vento.
Não sei como é que vocês lidam com estes momento menos bons da vida. Comigo, o segredo está no sujar das mãos. Quanto mais sujo as mãos, mais leve me sinto. O Paulo Etéreo ergue-se lentamente, muito lentamente, deixando para trás o Paulo Material, preso ao chão porque atualmente a sua matéria anda um pouco mais densa do que o desejável. Se eu fosse seguidor do espiritismo professado por Allan Kardec e Madame Blavatsky, este seria o momento em que diria que estes dois Paulos mantêm-se ligados entre si por um cordão "umbilical" prateado. Mas não... lamento desiludir os espíritas nesta matéria, mas aquilo que une o meu lado etéreo ao meu lado material é exactamente a sujidade que tenho nas mãos. A sujidade da cores das tintas. A sujidade dos carvões. A sujidade dos lápis de cera e dos pastéis. A sujidade que deixa rasto nos meus diários gráficos... trilhos feitos de impressões digitais que mais tarde me guiarão até aos sentimentos e às emoções que os produziram. Mesmo quando ilustro em ambiente digital, há um universo de esboços preparatórios nos meus cadernos que me deixam as mãos negras como a mais negra noite.
Curioso, agora que penso nisso... acabei de descobrir inadvertidamente que há um outro indicador nos meus esboços que me ajudam a traduzir a minha geografia emocional do momento: o grau de sujidade e de linhas sobrepostas, que se cruzam e se enleiam entre si até encontrarem aquilo que procuro. Ou seja... em bom português, quanto mais porcalhão, confuso e "peludo" (como diria o meu grande mestre, o arquiteto Miguel Mira, professor de desenho da faculdade que me ajudou a destruir todas as tretas que me foram transmitidas durante 12 anos de escola) é um esboço produzido por mim, mais denso e pesado me sinto no momento em que o fiz. Mais energia precisei para atingir a leveza que me salva das garras das tristeza. Tem lógica... os foguetões precisam de uma quantidade brutal de combustível para vencer a força da gravidade e o peso da atmosfera. De outro modo, não passam de foguetes nas festas de Agosto.
Portanto... resumindo, para mim tudo se resume a vencer o torpor e a inércia da tristeza, e sujar as mãos com um qualquer material que sirva para desenhar, pintar, garatujar ou borrar. Esse é o combustível que me ajudará a vencer a minha gravidade, e é dentro dessa lógica não
newtoniana que ultimamente tenho andado a fazer experiências cromáticas com vinho, e por isso mesmo a sujar as mãos, digamos, de uma forma mais etílica. A boa e doce vinhaça portuguesa, que num acto de loucura, vai ser para mim um material de desenho e pintura durante um evento em que irei participar em Dezembro. Ando por isso em testes cromáticos com vários vinhos, para já de várias regiões, mais tarde de uma só. Testes com vinhos saídos da garrafa. Testes com vinhos reduzidos com e sem aditivos naturais por mim introduzidos. Tudo serve para descobrir as potencialidades cromáticas vinícolas (e não só), procurando deste modo conjurar o Espirito do Vinho, que espero me ajude neste desafio / loucura em que aceitei participar.
E o mais giro disto tudo... não é todos os dias que podemos beber o material de pintura.