São 10:36 h do dia 6 de Janeiro de 2013. Domingo. Estou sentado num dos cadeirões do meu quarto, algures no Hospital de Santa Cruz. Da minha janela vejo a mancha verde de Monsanto, um pouco de mar, a margem sul, o Cristo-Rei e a Ponte 25 de Abril, e tudo o mais que a memória fotográfica me deixa alcançar.
Neste momento preciso muito de escrever, quase como o ar que respiro. Quando se escreve com as emoções à flor da pele, tatuamos a fina pele da nossa realidade exterior com tudo aquilo que nos vai cá dentro. Este sou eu. Isto é o que sinto neste exacto momento.
Pensei durante algum tempo no título que iria oferecer a este texto. Aos poucos o belíssimo título de um filme francês, do realizador Jacques Audiard, passou pelos interstícios da minha memória, e subtilmente, instalou-se para ficar... "De tanto bater, o meu coração parou".
Quase.
O dia 3 de Janeiro foi um dia como qualquer outro. Normal. Cruelmente normal.
A normalidade é um sentimento anestesiante. Faz-nos acreditar com uma fé inabalável que tudo estará sempre no sítio previsto, na hora esperada. Na rotina dos dias, sentimo-nos deuses eternos de uma realidade que só nos nossos desejos é inalterável e imutável. Embriagados pela nossa cegueira à impermanência, motivados pela nossa ocidental aversão à mudança, vamos ignorando que tudo, absolutamente tudo à nossa volta está a mudar. A Vida é isso mesmo... Mutabilidade no seu estado mais puro e alquímico. para onde que que nos viremos, o que observamos num preciso instante é totalmente diferente do que observamos no instante seguinte. E neste vórtice mutacional em que vivemos o nosso corpo não se escapa. Transforma-se a cada segundo, desde o exacto momento em que nos úteros maternos a nossa metade masculina se funde com metade feminina, num processo que não termina com a nossa morte. E que dizer das nossas ideias, da nossa personalidade. Desenganem-se por isso todos aqueles que proclamam bem alto a firmeza das suas convicções e ideias. Nada mais errado. E ainda assim que assim o é.
Foi neste estado de natural embriaguez da tão desejada normalidade que lentamente decorreu o meu dia. Uma embriaguez que seria violentamente curada ao fim da tarde, com os primeiros sinais de uma dor no peito. Primeiro de uma forma subtil, depressa se agigantou. Cravou-se simetricamente nas costas. Trepou-me a garganta. Derramou-se num frio glaciar pelos meus braços. Mergulhou as minhas mãos num formigueiro aflitivo. À minha volta tudo rodava e se desfocava.
Estes sinais não me foram estranhos. De alguma já os tinha sentido no dia anterior. Na altura coloquei-os na gaveta dos danos colaterais de uma gastroenterite viral que me estragou o final do ano. Mas naquele momento, estes sinais eram estranha e assustadoramente diferentes. Aconselhado por uma grande amiga decidi ir ao hospital. O que não poderia saber é que essa decisão iria marcar o topo da primeira grande ascensão que todas as montanhas-russas têm.
Urgências. Dados pessoais. Pressão no peito. Triagem. Tensão arterial muito alta. Frio intenso. Ritmo cardíaco desvairado. Máxima prioridade. Electrocardiograma. Exames específicos aos sangue. Espera. Diagnóstico...
Forte probabilidade de um ataque cardíaco iminente. Enfarte do miocárdio.
Não acredito.
Isto NÃO me pode estar a acontecer!
A lenta subida da minha montanha russa terminou. À minha frente uma descida imensa, loopings, curvas apertadas, sobe e desce, forças centrífugas, forças centrípetas, forças G.
Em poucos minutos fui internado. Ligaram-me a sensores, máquinas, a um sem número de tubos e painéis com constelações de luzinhas que monitorizam a minha força vital. Fui mil vezes picado e mil vezes medicado. Não tenham ilusões... Nada nos prepara para esta fragilidade até ao momento em que percebemos o quanto somos frágeis.
Perante a sombra de um ponto-final-parágrafo na minha vida, durante as 24 horas seguintes fui sujeito a um terramoto de emoções, sobre o qual os pilares da minha vida tremeram, fissuraram e estilhaçaram-se em um milhão de fragmentos. Deste amontoado de entulho, surgem aqui e ali alguns pedaços maiores da minha vida. Apenas alguns, os verdadeiramente importantes.
Medo? Não. Uma infinita tristeza. Pelos meus filhos... O que vai ser dos meus filhos? Sou tão novo. Tanta coisa por fazer, por sentir, por dizer.
Lá fora, a Natalina - que é uma verdadeira guerreira - lutava duramente para não deixar o nosso mundo desmoronar-se, especialmente pelos pequenos grandes seres que tanto dependem de nós.
Face ao resultado dos exames e às dúvidas daí decorrentes, o passo seguinte foi óbvio. A urgência de um cateterismo. Numa sala equipada para o meu pior, um tubo invade-me as artérias e procura avidamente o meu coração, para aí depositar uma "tinta" especial, visível aos olhos de uma máquina. Esta tinta irá pôr a descoberto a verdadeira natureza das sombras que me toldam o horizonte.
No ecrã, o meu coração é estrela de cinema. Enorme, em alta definição. Sinto-me adormecer sob o efeito de medicamentos, quando oiço lá longe a voz do médico "Paulo, o pior cenário não se confirma... O que tem é uma miocardite. Não é uma boa notícia, mas face à alternativa, é uma maravilhosa notícia"
Uma inflamação no coração? O que tenho é uma simples inflamação no coração? Senti-me renascer, ser repentinamente inflado com uma energia infinita e desconhecida. E acima de tudo... Em paz.
Pude finalmente terminar um jejum de sólidos e líquidos de 24 horas de uma forma gloriosa. Nem num restaurante de 3 estrelas Michelin irei ter o prazer de comer algo tão intenso quanto aquela humilde sandes de queijo e fiambre que a Natalina me comprou.
O dia de sábado foi passado em estado de graça. Passei uma manhã inteira com os meus pés assentes no vidro morno da janela do meu quarto, aquecido pelo sol mais dourado que alguma vez vi. É incrível o pouco de que precisamos para sermos felizes, e do muito que arrastamos atrás de nós com um fantasma de Dickens.
Neste momento estou internado. Não sei o que irá acontecer nem a que tratamentos e exames irei ser sujeito. Não sei se será de origem viral ou bacteriana. E também não sei quando terei alta. Mas sinto-me tão leve.
Sei que este estado zen não é permanente. Com o passar do tempo, tudo se atenuará. Sinto contudo que subi um patamar na minha existência. Não é este onde me encontro, mas é com toda a certeza acima daquele em que me encontrava.
E nunca esquecerei esta experiência. Não quero. Ponto final. Este sentimento gravado em mim será o meu casulo quando as coisas correrem mal. O sentimento de ter nascido outra vez.