"Na minha cabeça cabem muitas coisas!", disse o meu filho João do alto dos seus poucos centímetros de altura, quando tinha mais ou menos 3 anos. Coitado, sai ao pai... nem sabe onde se meteu.
E é exactamente esta minha tendência para as tempestades eléctricas cerebrais que têm tornado este período de convalescença tão difícil de ultrapassar. Estava habituado a viver no 80, agora passei para o 8. Devia aprender a viver no 44... o meio termo que aumenta as possibilidades de virmos a conhecer o 8 deitado - ∞ - mais tarde. Mas não sou assim... sempre saltitei entre o preto e o branco, entre a luz e a escuridão, entre o cima e o baixo tão apaixonadamente como me foi possível, e isso é bom por vezes, outras uma maldição. Agora vivo no cinzento. Há dois meses. Vivo na ironia de nunca ter tido tanto tempo livre como tenho e de nunca conseguir conseguir fazer tão pouco como agora faço. Estou a ilustrar um livro, com a velocidade que a actual aridez criativa me permite. Tenho-me dedicado à culinária, actividade que sinto jamais fará parte do meu curriculum, no capítulo das actividades que domino. Sou mais um seguidor de receitas, que depois as adultera q.b. Tenho mais tempo para estar com os miúdos, tarefa que me dá um enorme prazer mas cujas constantes batalhas campais testosterónicas nem sempre me permitem a paz de espírito monástica que os médicos me condenaram quando tive alta do hospital. E depois há o frigorífico e a televisão. Houve mesmo um dia que dei por mim a assistir a um programa de manhã, daqueles que segundo consta têm como público alvo os idosos... "10 maneiras de usar o aparelho de frisar cabelo" era o nome da rubrica. E eu que tenho um crânio mais liso que uma bola de bilhar.
Céus!
E depois? depois há a minha cabeça que não pára de pensar. De criar cenários. De querer voar. De querer viajar mesmo sem sair o lugar. E o medo de que nada volte a ser como dantes.
E depois há o corpo que pede para correr, mas não pode. Pede para deslizar, mas não pode. Pede para saltar, mas está proibido. Durante este período, descobri da pior forma que sou viciado em drogas... endorfinas para ser mais exacto. As tais que nascem do exercício físico, que dão uma enorme sensação de bem-estar e que ainda por cima são grátis. E agora, parado, imóvel, vejo-me privado das minhas doses semanais. Até hoje, não imaginava que os sintomas de privação pudessem ser tão intensos, e ter tantas consequências, especialmente ao nível emocional.
A minha família e os amigos preocupam-se comigo. Não gostam de me ver assim, triste, cabisbaixo, pardacento. E eu faço de tudo para me manter na luz, afastado da sombra que um eclipse de mim mesmo pode produzir.
Mas por vezes é tão difícil.
Talvez por isso a Natalina e os meu filhos tenham decidido ajudar-me a cumprir um sonho antigo. Sempre quis ter uma volkswagen pão-de-forma. Podia ser de qualquer cor... azul-cueca, amarela ou beje. Com cortinas com flores havaianas, cama e cozinha incluídas. Há uns anos atrás, quando necessitámos de trocar de carro, chegámos mesmo a ponderar adquirir esta viatura icónica. Viatura não, estilo de vida. Mas a razão sobrepôs-se à emoção, e optámos pelo conforto moderno. Ainda hoje não sei se foi uma boa opção.
Pois bem... agora tenho uma. Linda. Vermelha e branca. Daquelas que até os vidros da frente rebatem. E não gasta nada. Só tem um senão... é do exacto tamanho de um pão-de-forma. Tem 1332 peças, e demorou alguns dias a construir. Mas deu-me um gozo do caraças, a mim e aos meus filhos porque estas coisas sabem melhor quando partilhadas. E a minha cabeça pôde finalmente descansar um pouco.